MILITAR PODE SE MANIFESTAR POLITICAMENTE? A LIMITAÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DE MILITARES

Uma das grandes certezas que temos em relação aos tempos de hoje é que a liberdade de se expressar e se manifestar é um dos bens jurídicos mais valiosos que temos, justamente por podermos nos utilizar dessa ferramenta para fazermos parte do debate público, tanto social quanto político.


E, nesse sentido, sabendo-se como a legislação castrense é contundente em relação ao envolvimento de militares com política, se faz inevitável pensar acerca da linha tênue que separa o que está dentro da liberdade de expressão do militar enquanto cidadão e o que lhe é proibido em relação à manifestação de seus pensamentos, em razão de sua condição profissional de militar.


Desta forma, se faz necessário citar, antes de tudo, o que a legislação diz acerca dos institutos jurídicos pertinentes para o estudo do caso em tela.


Assim, tem-se como base o que a Constituição Federal garante enquanto direito fundamental aos cidadãos, em seus incisos IV e IX, do art. 5º, nos quais se garante como livre a manifestação do pensamento, vedando-se apenas o anonimato, bem como a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.


De tais dispositivos resta claro que o indivíduo tem uma liberdade quase que absoluta para se expressar da maneira que quiser, de forma geral. Porém, no que concerne a tal direito aplicado ao contexto castrense, é importante observar o que a legislação militar restringe de direitos nessa seara.


Desta feita, o art. 166 do Código Penal Militar tipifica como crime o ato de “publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo”.


A partir da mencionada disposição normativa, se verifica como a segunda parte do preceito primário impacta acentuadamente a liberdade de expressão do militar, já que lhe proíbe de criticar publicamente atos praticados por seus superiores (ainda que ilegais e absurdos), bem como criticar questões acerca da disciplina militar e, ainda, resoluções governamentais.


Diante disso, pode-se perceber o elevado nível de limitação à liberdade de expressão do militar, que se fundamenta em disposições um tanto quanto subjetivas e abertas, no sentido de que qualquer assunto que envolva o ambiente militar ou mesmo atos governamentais, pode ser entendido como uma conduta criminosa, com base no referido dispositivo penal.


Tem-se, também, que no âmbito do Exército Brasileiro, existem algumas transgressões disciplinares que tipificam condutas que envolvem a liberdade de expressão do militar, que constam no Anexo I do Regulamento Disciplinar do Exército.


Nesta direção, o número 56 do Anexo I do RDE tipifica como transgressão disciplinar o militar “tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa”. Do disposto, se verifica como conduta absolutamente vedada ao militar o debate sobre política ou religião, no âmbito de região militar.


Na mesma toada, o número 57 do Anexo I do RDE estabelece que o militar incorre em transgressão ao “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. Então, além de o militar não poder tomar parte em discussões sobre política ou religião em ambiente militar, este também não poderá se manifestar em público sobre política.


Importante destacar, ainda, que o RDE também veda ao militar, no número 58, do Anexo I, “tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária”.


Do conjunto de transgressões elencadas, resta claro como há uma acentuada e destacada vedação, em amplos sentidos, à manifestação política de militares. Assim, em termos de liberdade de expressão, se verifica que, no âmbito castrense, pelas normas que se têm atualmente, esse direito para militares se encontra absolutamente limitado e quase inexistente em termos de assuntos político-partidários.


E na sequência das mencionadas transgressões, existe outra que limita ainda mais a liberdade do militar poder se expressar, que se encontra tipificada no número 59 do  Anexo I do RDE, dispondo o seguinte: “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”.


Do constante da referida transgressão se pode observar que é considerado transgressão até mesmo o militar oferecer conhecimento a outros militares por meio de discussões sobre assuntos de cunho militar, além daqueles já amplamente vedados acerca de política. Então, em relação aos assuntos mais importantes para a vida do profissional militar, a liberdade para se manifestar acerca deles praticamente inexiste, já que quase qualquer conduta pode ser enquadrada nos dispositivos das mencionadas transgressões disciplinares.


Não obstante, o número 103 do Anexo I do RDE tipifica como transgressão a conduta do militar “autorizar, promover ou tomar parte em qualquer manifestação coletiva, seja de caráter reivindicatório ou político, seja de crítica ou de apoio a ato de superior hierárquico, com exceção das demonstrações íntimas de boa e sã camaradagem e com consentimento do homenageado”.


Então, do disposto na respectiva transgressão, bem como nas demais já citadas, resta evidente que para o militar é vedada toda e qualquer manifestação de pensamento acerca de política e afins.


E a conclusão inevitável em termos jurídicos em relação à possibilidade de o militar poder se manifestar politicamente é no sentido de que tal conduta é absolutamente vedada por toda a legislação castrense que trata da matéria e que a liberdade de expressão que no geral alcança todos os cidadãos, nesse caso não alcançará os militares.


Porém, para além das considerações jurídicas que foram feitas acerca do assunto, é importante, também, realizar uma análise moral a respeito da temática, para que se possa chegar a melhor verdade possível sobre o direito em comento aplicado ao contexto militar.


E, neste sentido, é importante observar o que acontece no contexto político do momento, tendo em vista que o governo atual possui diversos militares, muitos inclusive da ativa, ocupando posições de destaque em Ministérios e afins, o que, por óbvio, obriga esses militares a lidarem, na mais pura essência da coisa, com política.


Incrivelmente, o regramento normativo que se tem hoje veda clara e nitidamente o envolvimento de militares com praticamente tudo que envolva política, mas diversos militares na ativa ocupam cargos em governos políticos, e nada, em termos de cometimento de transgressões disciplinares, é imputado a eles.


E se o intuito do legislador ao editar todas as disposições que buscam afastar o militar da política foi no sentido de preservar as instituições militares enquanto de Estado e não de governo, não faz sentido algum viabilizar que militares da ativa (que coincidentemente ocupam postos do mais alto escalão hierárquico) ocupem cargos civis em governos políticos. De tal situação se verifica mais uma vez, para o espanto de zero pessoas, que a cobrança do cumprimento dos deveres militares parece não alcançar os ocupantes da alta cúpula da hierarquia militar.


Acaba que no contexto da referida análise, o impacto social e jurídico de vinculação da instituição militar à política, gerando parcialidade em uma instituição de Estado, se potencializa de uma forma muito mais prejudicial quando generais e coronéis se envolvem diretamente com governos políticos, pois estes acabam por representar efetivamente a instituição da qual fazem parte, em decorrência do próprio posto, do que militares de baixa patente, que sequer podem se posicionar no nível mais básico e singelo de manifestação de seus pensamentos.


E para que o referido absurdo deixe de existir, principalmente com os problemas atuais que vêm se tendo, como o caso de um general da ativa participar de uma manifestação política e nada com ele acontecer, está tramitando na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição n. 21/2021, que inclui na Constituição Federal a taxativa proibição de ocupação de cargos civis por militares da ativa.


Então, no final das contas, se verifica que, moralmente, há um grande exagero nas normas que limitam a liberdade de expressão de militares em relação principalmente à política e à questões militares, o que poderia ser mais brando, no sentido de permitir que militares pudessem expor seus pensamentos nessa seara, mas com limitações de caráter objetivo que visasse a preservação da imparcialidade da instituição militar. Assim, permitindo que o militar pudesse expressar suas opiniões abstratas acerca de política, mas limitando tais posicionamentos em relação à manifestação acerca de questões concretas, e principalmente no que concerne à possibilidade de militares poderem discutir questões militares, o que é fundamental para a evolução das instituições.


Porém, o problema maior que se tem em relação ao assunto não é a mera discussão política, que na maioria das vezes não acarretará em nenhuma situação prática, mas sim a vinculação de militares da ativa em governos políticos, que gera efetivamente resultados práticos e evidencia, por óbvio, a posição políticas desses camaradas.


Portanto, a moral da história e conclusão inevitável é que dá para se garantir a liberdade de expressão para militares poderem falar sobre qualquer assunto, com algumas limitações de caráter objetivo e com fundamento de preservação da imparcialidade institucional, mas não se deve permitir que militares da ativa integrem governos políticos, uma vez que tal situação contradiz tudo que se busca preservar com as vedações que se têm hoje.

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