FUI DETIDO POR FALAR A VERDADE SOBRE O EXÉRCITO

Em 18 de março do presente ano de 2021 eu comecei, mediante muito risco de dar errado e coragem para enfrentar as eventuais consequências, a propagar conhecimento na internet acerca de algumas questões polêmicas no âmbito do Exército Brasileiro.


O risco de dar errado é bem acentuado pelo fato de, por mais que seja necessário e eticamente certo questionar a realidade que vivemos, ser considerado uma transgressão disciplinar fazê-lo no âmbito castrense. E diante desse alto risco, é necessário que se adote uma postura de muita coragem para, ainda assim, encarar todos os obstáculos para fazer o que precisa ser feito, já que se o trabalho desenvolvido obtiver visibilidade (que, paradoxalmente, é o objetivo) certamente providências serão tomadas pela instituição a fim de punir o responsável por tal conduta.


E no meu caso foi exatamente o que aconteceu (só que sem a parte da visibilidade do meu trabalho - ainda). Pouco mais de 5 meses após o início de tudo e apenas alguns poucos artigos jurídicos e vídeos produzidos, falando sobre militarismo, o alto escalão do Exército tomou conhecimento do que eu vinha fazendo e me puniu por isso.


É fato que pelas previsões normativas da instituição o que eu venho fazendo é considerado transgressão, tendo em vista que não se pode discutir ou provocar discussão acerca de assuntos de natureza militar, o que é um absurdo, mas se encontra previsto no número 59 do Anexo I do Regulamento Disciplinar do Exército. Porém, moralmente, o que eu tenho feito, buscando melhorias para as praças da instituição que são absolutamente deixadas de lado em relação ao acesso a direitos muitas das vezes básicos, é algo absolutamente necessário e que merece o sacrifício de ser buscado.


Diante disso, decidi que correria o risco e passaria pelo que fosse necessário para alcançar o objetivo.


Em meados de setembro eu fui informado de que haviam descoberto na Organização Militar que eu sirvo a minha atuação na internet e não demorou muito para que me fosse entregue um Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar.


Me justifiquei, não me eximindo de culpa alguma em relação ao que estava fazendo, pois o fiz conscientemente, mas deixei claro que considerava mais importante que meu comodismo como bom militar buscar ajudar na construção de um pensamento crítico acerca dos erros que temos na instituição e em sua consequente evolução. E como era de se esperar, fui punido. 3 dias de detenção, com atribuição de grau médio à transgressão, foi a pena.


Na decisão foi feito constar que eu estava sendo punido "por ter postado em redes sociais vários vídeos versando sobre assuntos de natureza militar, sem ter sido autorizado por autoridade competente (números 9, 31, 59 e 105 do Anexo I do RDE)".


E pelo que temos vigorando hoje quanto ao assunto, dá para considerar a punição como sendo até razoável, em linhas gerais. O que a torna nada razoável é compará-la com as punições (ou falta delas) de oficiais generais que cometeram transgressões muito mais graves, com base no Regulamento, como foram os casos do então General Mourão e do General Pazzuello, que serão detalhados logo mais.


E o pior de tudo é que nem mesmo recorrer eu pude, pois por mais que fosse possível interpor recurso, não haveria efetividade alguma em fazê-lo, pois os responsáveis em minha Organização Militar decidiram por não atribuir efeito suspensivo à decisão inicial a partir da minha iniciativa de recorrer, o que é um absurdo tamanho e um problema gravíssimo da sistemática de apuração de transgressões disciplinares no âmbito do Exército, o que foi, inclusive, tema do nosso último artigo.


Como a punição que foi imposta a mim se configura em restrição da minha liberdade, para que eu tenha a oportunidade de modificar a decisão inicial e fazer com que tudo em relação a ela possa deixar de existir (sendo meu recurso provido), é imprescindível que haja uma suspensão desse efeito oriundo da punição, pois não há como devolver dias de liberdade que são retirados de alguém.


Então, fazer com que eu cumpra a referida pena antes de meu recurso ser analisado em todas as instâncias é algo absolutamente teratológico e ilegal, pois vai contra os próprios preceitos do RDE.


O próprio art 55 do supracitado dispositivo regulamentar garante que "se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado".


Desta forma, como pode tudo que o efeito suspensivo busca resguardar não estar implícito e não ser uma decorrência lógica do que o referido texto normativo garante ao acusado? É impossível interpretar juridicamente tais dizeres e não chegar a conclusão lógica de que para que o objetivo ali constante possa se concretizar é necessário que se atribua o efeito suspensivo à decisão inicial quando houver interposição de recurso, pois quando se envolve perda da liberdade, não há como determiná-la antes do trânsito em julgado do procedimento.


E tentativas da minha parte para buscar fazer valer meu direito de poder recorrer em liberdade não faltaram. Logo após o término do expediente do dia em que me informaram que não atribuiriam efeito suspensivo à decisão inicial e que consequentemente eu teria que iniciar o cumprimento da punição no dia seguinte, eu elaborei um habeas corpus com pedido de medida liminar junto à Justiça Federal.


O absurdo foi ter que ver um juiz (profissional conhecedor do direito e, a princípio, muito bem preparado para ocupar tal posição) concordando com o posicionamento da instituição no sentido de que o RDE não mencionava expressamente nada acerca do efeito suspensivo.


E se o juiz não está nessa posição justamente para fazer a interpretação das normas e chegar à conclusão do que se tem como finalidade nelas, eu não sei para quê ele está ali. Porque não há como entender de forma diferente da óbvia constatação de que o art 55 faz constar, implicitamente, a necessidade de atribuição de efeito suspensivo à decisão inicial para resguardar o contraditório e pleno direito à ampla defesa do militar.


E de tal situação se verifica facilmente que, apesar de tudo que o RDE prevê e disciplina, a aplicação de uma punição ao militar acaba sendo em boa parte discricionária, já que quando se quer aplicá-la todos os meios para fazê-lo são buscados, por meio de diversos métodos hermenêuticos e afins, como o apresentado acima, e quando não se quer, se criam mil e um subterfúgios para não aplicá-la, como nos casos dos supramencionados generais que detalharemos a seguir.


Desta feita, o caso do então General Mourão é um exemplo perfeito para ilustrar tal situação. Em meados de setembro de 2017 o referido general compareceu, fardado, a uma reunião maçônica e proferiu para os presentes diversos posicionamentos políticos, falando, inclusive, em intervenção militar.


Assim, resta evidente como a conduta adotada pelo militar em comento encontrava-se absolutamente carregada de um caráter político e, pela menção a uma possível intervenção militar no Estado, até mesmo antidemocrático, sem falar na representação do Exército que ali ele fazia, uma vez que ele ocupava o posto mais elevado da instituição, sendo um general-de-exército, consequentemente assim sendo uma representação do comando da instituição, juntamente ao fato de estar fardado naquela ocasião e naquele contexto, que demonstra uma forte intenção de vincular o que ele ali dizia ao que ao que se discutia no alto comando da instituição sobre o assunto.


Em um contraponto muito claro entre a mencionada conduta do general e a minha, de gravar vídeos para o YouTube falando sobre militarismo, me parece ser muito mais gravoso o que fez o general, no tocante a uma afronta à disciplina militar.


E se o entendimento por parte da instituição é de que minha conduta atentou contra a disciplina, não há como se entender a conduta do General Mourão como não sendo atentatória também.


Mas, como você já deve imaginar, o general não foi punido e o então Comandante do Exército, Gen Villas Bôas, ainda passou um pano absurdo para a conduta dele de fazer menção a uma intervenção militar no país.


O que não dá para termos na instituição é isso: uma diferenciação nítida e absurda entre oficiais e praças no sistema de manutenção da disciplina. Se o previsto é aplicar uma punição para uma conduta que o regulamento considere inadequada, isso deve ser feito independente da pessoa do militar, ou pior, de seu posto ou graduação. 


O recente caso do General Pazzuello é outro que vai na mesma direção. O referido militar participou de forma cristalina e inequívoca de uma manifestação política, que é uma conduta vedada pelo RDE. Não se deveria passar pano e desconsiderar a transgressão de uma conduta como essa, mas por se tratar de um general a pessoa que a cometeu, é o que é feito pelo comando. Simplesmente ignoram e nada fazem.


Agora no meu caso, em que por eu apenas gravar vídeos para o YouTube fui punido com 3 dias de detenção (que é a segunda modalidade de pena mais gravosa em termos de penas restritivas da liberdade), o alto escalão considera ter sido justa e até branda demais a punição. E eu até não discordaria se assim o fosse para todos. O que não dá é eu ser punido apenas por ser praça. Isso não pode ser aceito com tranquilidade.


E como meu direito a recorrer foi praticamente cerceado, e meu habeas corpus foi negado, logo após a publicação da nota de punição eu iniciei o cumprimento dos 3 dias de detenção no Batalhão da Guarda Presidencial.


No geral os momentos passados lá foram até tranquilos, tendo ocorrido apenas alguns pequenos estresses. Acabaram por determinarem que eu ficasse no alojamento específico de soldados, por mais que eu seja cabo. Mas até que eu não me chateei com isso, apesar de imaginar que poderia rolar algum problema no tocante a um eventual desrespeito comigo. E infelizmente minha intuição não se enganou. Não passaram nem 5 minutos desde que eu havia chegado no referido alojamento e um soldado num aglomerado com outros vários bradou que iria "judiar do punido" naquele dia. Acredito eu que ele não imaginasse que eu era cabo, mas na hora nem nisso eu consegui pensar, pois fui tomado pelo instinto automático da "mijada", e logo dei uma nele, no padrão Exército Brasileiro de qualidade. Na sequência informei ao sargento-de-dia o que havia ocorrido e solicitei que, se possível, eu fosse alocado no alojamento de cabos (e o absurdo é eu ter que pedir isso sendo um cabo, mas tudo bem…). Ele me levou ao comandante de companhia que atendeu ao meu pedido. De cabeça fria eu me retornei ao alojamento de soldados para conversar com eles e explicar o porquê de eu estar ali punido, apesar de não ter nenhuma obrigação de fazê-lo, mas com o intuito de gerar um aprendizado naqueles militares, de como não se deve estereotipar alguém negativamente em razão de um senso comum errado que se cria. E se eu fosse um soldado, eu mereceria esse tipo de tratamento? Com certeza não. Ainda mais pelo motivo que me fazia estar ali. Expliquei a eles que eu ali estava pelo simples fato de estar buscando melhorar as nossas vidas no Exército enquanto praças que somos, e que de certa forma eu estava ali por tentar fazer algo positivo para eles também e eles próprios estavam me tratando inadequadamente. Nessa eu ganhei alguns inscritos para o canal e acredito que tenha deixado um importante aprendizado com eles.


E tal situação ilustra bem o desgaste que é passar por uma detenção disciplinar, não merecendo ser taxado negativamente por isso, porque quando te veem como punido, não importa o que tenha lhe feito chegar a essa situação, você está ali por ser um militar ruim, que transgride a disciplina. Imagine ainda quando tudo isso se dá quando você está cumprindo essa punição em um quartel que não é o seu e onde ninguém te conhece. Tudo fica ainda pior.


Agora imagine você se um dos referidos generais passaria por isso. Tenha a certeza de que muito provavelmente isso nunca acontecerá. É preciso que muita coisa mude para que se consiga atingir ao menos o básico de justiça para esse sistema disciplinar.


E por fim eu espero que tenha restado claro, a partir de todo o caso prático que eu vivenciei na pele, como é absurda a diferenciação entre praças e oficiais na sistemática em comento e o quão necessário se faz alterar os regulamentos que normatizam o sistema de manutenção da disciplina na caserna, para que ele possa de fato ser efetivo em sua finalidade e possa promover isonomicamente a justiça necessária para todos, num caráter absolutamente imparcial.

Comentários

  1. blz guerreiro
    vi seu vídeo questionando o presidente em relação aos CB e SD
    muito bom,
    tiver um tempinho manda um mensagem no meu wats 61981722800
    Valeu um abraço

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