O PROBLEMA DAS PUNIÇÕES DISCIPLINARES NO EXÉRCITO BRASILEIRO
É sabido que o Exército Brasileiro fundamenta seu militarismo nos princípios de hierarquia e disciplina, que vincula os militares integrantes da Força ao cumprimento de diversos deveres inerentes à função militar, sendo tais pressupostos indispensáveis para o correto desempenho das atividades castrenses.
E tendo em vista exatamente os supracitados princípios, a instituição militar possui diversas previsões de transgressões disciplinares, que quando praticadas por seus militares ensejam a possibilidade de aplicação de punições.
Importante frisar que tal sistemática é necessária para o bom funcionamento da instituição, uma vez que esta se alinha adequadamente aos princípios da Força e potencializa a possibilidade de êxito no cumprimento da missão.
Porém, também é imprescindível destacar que a referida sistemática de aplicação de punições disciplinares no âmbito do Exército Brasileiro só funciona efetivamente para as praças da instituição, tendo em vista que, diante da extrema subjetividade normativa que possibilita à autoridade aplicar uma punição ou não a um eventual transgressor da disciplina, os oficiais acabam, na maioria das vezes, sendo protegidos pelo alto escalão, já que ambos pertencem à mesma categoria hierárquica, e é nesse ponto que reside um dos problemas.
Não se deve ter uma diferenciação institucional atinente à aplicação de punições para uns e de não aplicação para outros, baseada em critérios espúrios de predileção por uma categoria privilegiada de militares em detrimento de outra, que não possui qualquer privilégio ou voz ativa na sistemática da manutenção da disciplina militar.
Exemplificando a questão com o que se encontra previsto no próprio Regulamento Disciplinar do Exército, o parágrafo 3° do art. 28, que trata da pena de detenção, estabelece a possibilidade de que o oficial ou aspirante-a-oficial possa ficar detido disciplinarmente em sua residência. Na mesma direção, o parágrafo 4° do art. 29, que trata da pena restritiva de liberdade mais grave que há, que é a de prisão, também estabelece a possibilidade de que o oficial ou aspirante-a-oficial possa cumprir tal pena em sua residência. De tais previsões resta evidente como há uma diferenciação gigantesca na forma como oficiais e praças são tratados em termos de punições disciplinares pelo próprio Regulamento que disciplina formalmente a matéria na Força.
E muitos são os casos que ilustram o relatado na realidade prática da caserna, e quem vive essa realidade conhece muito bem. Mas também existem alguns casos que possuem uma repercussão maior e acabam se tornando nacionalmente conhecidos pelo grande público. Um desses casos é o do General Pazzuello, que na época em que era Ministro da Saúde do Governo do Presidente Bolsonaro, compareceu a uma manifestação política em apoio ao presidente, o que o fez incorrer, de maneira incontestável, em diversas transgressões disciplinares previstas no Regulamento Disciplinar do Exército. Acontece que o Comando do Exército não iria tomar nenhuma atitude em relação ao caso, nem mesmo de instaurar um Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar, porém, como foi um caso notável e amplamente acompanhado pela mídia, acabou se criando uma pressão social para que a conduta fosse apurada e punida. Diante disto, foi direcionado um FATD ao General, porém, apenas para inglês ver, já que não houve qualquer aplicação de punição e ainda se decretou sigilo sobre toda a documentação que envolve o caso.
Da situação narrada, resta evidente como um oficial general que transgride a disciplina é tratado pela instituição, que mesmo diante de pressão para que haja uma consequência à ação do militar, decide por passar pano para a conduta transgressora, em razão da pessoa específica que a adotou.
E os problemas narrados até então são grandes expoentes do sistema arcaico de punições disciplinares no âmbito do Exército, porém não são os únicos. Há diversos outros. Alguns deles atentam até mesmo contra o direito e garantia fundamental ao contraditório e à ampla defesa que todo cidadão possui.
Para retratar como essa afronta é evidente no procedimento de apuração de transgressões disciplinares, faz-se importante destacar a previsão capitulada no parágrafo 2° do art. 142 da Constituição Federal, que estabelece a vedação à impetração de habeas corpus em relação à punições disciplinares.
Pela interpretação doutrinária e jurisprudencial já conferida ao supramencionado dispositivo constitucional, a referida vedação se dá em relação à discussão de mérito no âmbito de punições disciplinares militares, mas não no que concerne a atributos formais dos procedimentos inerentes a tais punições. Assim, havendo qualquer vício formal no procedimento de apuração de eventual cometimento de transgressão disciplinar, é cabível a impetração de habeas corpus.
Ocorre que por vezes, pela existência da citada vedação colocada de forma tão genérica no texto constitucional e por aquilo que podemos chamar, de certa forma, de temor do Judiciário invadir uma competência que não lhe cabe, as tentativas de impetração do remédio constitucional em epígrafe com vistas a modificar falhas formais em procedimentos disciplinares militares não são providas pela Justiça.
Comigo mesmo aconteceu recentemente uma situação que ilustra perfeitamente o ponto destacado acima e que eu explicarei mais detalhadamente em nosso próximo artigo jurídico. Mas, resumidamente, foi determinado no âmbito de apuração de uma transgressão disciplinar que foi imputada a mim, que eu ficasse detido por 3 dias. Acontece que eu iria me utilizar das ferramentas de recurso oferecidas pelo próprio RDE buscando a reforma da decisão inicial. Porém, foi determinado que eu cumprisse a punição tão logo fosse publicada a decisão inicial em boletim interno, por mais que eu ainda tivesse possibilidade de recorrer e modificar a decisão. Isso com a justificativa de que o RDE não faz menção expressa à atribuição de efeito suspensivo quando da interposição de recurso.
O efeito suspensivo nada mais é do que a interrupção temporária das consequências práticas de uma decisão inicial em um procedimento administrativo ou judicial. Assim, possibilita-se que o indivíduo afetado por uma decisão em primeiro grau e que deseje recorrer, tenha a possibilidade de modificar tal decisão sem sofrer antecipadamente com as consequências que podem ser modificadas e até mesmo deixarem de existir.
Nesse meu caso em específico, em que a consequência da decisão se configura na restrição da minha liberdade, não se atribuir efeito suspensivo à decisão é um erro teratológico, já que tudo que a ação de recorrer representa perde sentido se as consequências da decisão inicial são cumpridas pelo afetado antes que esse possa recorrer. Como se repara a perda da liberdade? Simplesmente, não se repara. Não se tem como proceder à devolução da liberdade de alguém que foi restringida erroneamente.
Então, principalmente nesses casos em que o que está em jogo é a liberdade do indivíduo, é decorrência lógica do direito à ampla defesa do indivíduo a atribuição de efeito suspensivo à decisão inicial que lhe imputa uma consequência restritiva nesta seara.
Mas também não deixa de ser um erro do próprio RDE a omissão em relação à falta de menção expressa ao efeito suspensivo. Agora também não dá para o operador do direito, ao se deparar com tal questão, alegar como justificativa para penalizar alguém um argumento nesse sentido, pois o referido profissional existe exatamente para fazer a adequada interpretação de situações complexas como essa.
E a verificação inevitável de tudo isso é que a forma como a questão da atribuição ou não do efeito suspensivo é tratada no âmbito do Exército viola absolutamente o direito à ampla defesa do militar, quando do entendimento de que não se deve aplicar o referido instrumento jurídico diante da interposição de recurso contra a decisão inicial.
O próprio art 55 do RDE estabelece que "se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado". De tal modo, resta evidente que para que seja possível alcançar o previsto no referido dispositivo normativo é imprescindível que haja a atribuição de efeito suspensivo quando da interposição de recurso, pois só assim se torna possível garantir efetivamente o direito à ampla defesa previsto no supramencionado artigo da norma, pois não há como anular uma punição disciplinar que restringe a liberdade do militar se este militar cumprir, antes do trânsito em julgado do procedimento, com a punição que lhe determina essa consequência.
Por fim, resta claro e evidente que a sistemática de punições disciplinares no âmbito do Exército possui problemas extremamente graves que precisam ser urgentemente revistos e aperfeiçoados e que acabam por afetar direta e especificamente as praças da instituição, que são absolutamente desprestigiadas nessa seara.
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